Na
próxima vez em que sentir preguiça de preparar uma refeição com ingredientes
frescos e variados, pense duas vezes. O consumo exagerado de pães, massas,
lanches e comidas prontas tem sido considerado o gatilho de uma reação orgânica
classificada como "alergia alimentar tardia", também conhecida como
intolerância, sensibilidade ou alergia escondida. O principal vilão, nesse
caso, seria o glúten, uma proteína encontrada no trigo, na
cevada e no centeio. A intolerância ao componente pode afetar a saúde e,
segundo especialistas, o problema é mais comum do que se imagina.
Os sintomas da sensibilidade ao glúten incluem diarreia ou prisão
de ventre, anemia, osteopenia, rinite, sinusite, alterações na pele, doenças
autoimunes, enxaqueca, depressão, sensação de inchaço, aumento da gordura
abdominal ou emagrecimento, entre outros.
Segundo os nutricionistas, a retirada dessa proteína da dieta
geralmente leva à melhora ou ao desaparecimento dos sinais. “No âmbito da
nutrição, já existem vários estudos que comprovam que o abuso do glúten pode
prejudicar a saúde como um todo”, explica a nutricionista clínica funcional
Denise Madi Carreiro.
Já entre
os médicos, a questão é polêmica: evitar o consumo do glúten só se justifica no
caso específico da doença celíaca, uma intolerância permanente à
proteína que afeta o intestino delgado. “Para diagnosticá-la, é necessário
submeter-se a exames específicos”, adverte a médica Vera Lúcia Sdepanian, chefe
da disciplina de gastroenterologia da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp).
Para quem sofre de doença celíaca, o consumo do glúten provoca um
ataque do sistema imunológico, que danifica a estrutura da mucosa do intestino
delgado, impossibilitando a absorção de nutrientes vitais.
Em 2007,
o European Journal of Gastroenterology & Hepatology publicou uma pesquisa dirigida pela
médica, onde se observou um grupo de 3.000 doadores de sangue. O resultado
mostrou que, em cada 214 pessoas, ao menos uma era portadora da doença celíaca.
“Usamos o termo 'ao menos', porque alguns desses doadores não aceitaram fazer a
biópsia necessária", conta a médica.
Os dados mostram que a prevalência da patologia é alta na
população brasileira. "Partindo dessa premissa, é possível que deixar de
consumir glúten possa mesmo trazer benefícios para um grande número de pessoas;
mas é preciso ser criterioso e submeter-se a um diagnóstico preciso”, defende.
"Envenenamento
progressivo"
O médico
Attilio Speciani, especialista em alergia e imunologia e diretor científico do Servizi
Medici Associati (SMA),
na Itália, explica que existem dados científicos que mostram a estreita relação
entre alimentação e inflamações. Cita como exemplo a identificação do BAFF (B Cell Activity Factor),
cuja ação inflamatória e imunomoduladora explica por que a alergia alimentar
tardia causa sintomas em cascata. “As reações são muitas, e não devem ser
desprezadas, pois se assemelham a um envenenamento progressivo e lento”,
diz.
“Na prática, o organismo reconhece o inimigo, fica de olho,
procurando limitar seus danos. Se a introdução do alimento persiste, o sistema
perde o controle, o processo inflamatório se intensifica, e os sintomas se
exacerbam”, acrescenta Speciani.
Epidemia
silenciosa
Segundo o gastroenterologista John Cangemi, da Clínica Mayo,
nos EUA, estudos indicam que, para cada pessoa diagnosticada, há outras 30 que
provavelmente sofrem de doença celíaca e não sabem.
O
nutricionista clínico Thomas O'Brian, da Institution for Functional Medicine,
também nos EUA, afirma que, em seu país, uma em cada quatro crianças examinadas
são celíacas. Quando alguém lhe pergunta se há um sintoma mais evidente, ele
costuma usar uma frase de um gastroenterologista pediátrico da Nova Zelândia,
Rodney Ford: “O sintoma comum da intolerância ao glúten é estar doente”.
Segundo o especialista, em qualquer tipo de doença, essa alergia deve ser
considerada.
Para O'Brian, essa hipersensibilidade ao glúten é uma
epidemia silenciosa e todas as especialidades médicas deveriam dar maior
atenção ao fenômeno. “Há pelo menos treze razões possíveis para o aumento de
sua manifestação, mas a causa mais comentada é a modificação dos fenótipos e
genótipos das plantas nos últimos 20 anos”.
Na opinião de Carreiro, porém, o problema é resultado da
substituição de uma dieta equilibrada por alimentos de fáceis preparo,
acesso e consumo. “É claro que eles tendem a ser até mais saborosos, mas o que
se vê é realmente um abuso. Pão no café da manhã, massas no almoço e no jantar e,
para o lanche, bolachas! Quando o trigo é substituído por outros carboidratos e
por tempo determinado, a pessoa reaprende a comer e os benefícios são
muitos", diz. Para a nutricionista, não é o caso de declarar guerra ao
glúten, nem declará-lo mocinho ou vilão. "O fato é que seu consumo tem
sido desenfreado”, finaliza.
A médica Vera Lúcia Sdepanian, chefe da disciplina de
gastroenterologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), concorda que
muita gente pode ter a doença sem ter conhecimento: “Se você se identifica com
os sintomas ou sabe de algum conhecido que sinta o mesmo, o melhor a fazer é
procurar um especialista que seja capaz de fazer um diagnóstico preciso. E este
prevê sorologia para antitransglutominase (IgA) e anticorpo antiendomísio, além
de uma biópsia do intestino”.
Leve ou
grave
Os gastroenterologistas advertem que a intolerância ao glúten
acontece de duas maneiras muito específicas: ou se trata de uma alergia do tipo
imediata, e há uma reação imunológica violenta – nesse caso, nem seria
necessária a ingestão, bastaria apenas tocar farinha de trigo, miolo de pão –
ou é a doença celíaca. “Predisposição genética é um fator envolvido, pode se
manifestar em qualquer tempo e idade, mas geralmente já é identificável no
primeiro ano de vida”, explica Sdepanian.
Mas
O'Brien diz que há uma diferença entre uma intolerância “leve” e a doença
celíaca: “Na doença, a sensibilidade ao glúten se manifesta no intestino com
total lesão da mucosa intestinal. Já a intolerância se manifesta em qualquer lugar
do corpo, incluído o intestino. Por exemplo, a síndrome do intestino irritável sem doença celíaca melhora
sensivelmente com uma dieta sem glúten.”
Riscos
O problema do diagnóstico tardio não é o incômodo causado pelos
sintomas, que muitas vezes são desprezados. “O risco é que essa constante
resposta imunológica pode desencadear doenças autoimunes, terceira causa de
mortalidade e deficiência no mundo industrializado”, declara O'Brian. De acordo
com o especialista, essas doenças são dez vezes mais comuns entre os celíacos.
Como o diagnóstico é considerado difícil, o conselho médico é
procurar profissionais familiarizados com esse tipo de doença. “Com
a mesma frequência que ela passa despercebida em muitos exames médicos, os
diagnósticos podem ser feitos sem comprovação suficiente. E isso poderia
levar à adoção de dietas severas, muitas vezes por razões erradas”,
observa Cangemi. “A conduta correta é fazer uma biópsia para confirmar um
caso de doença celíaca”, completa.
0 comentários:
Postar um comentário